quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

TEXTO BASE PARA O ESTUDO DIRIGIDO (REVOLUÇÃO CIENTIFICA)


A revolução cientifica

A revolução científica moderna tem seu ponto de partida na obra de Nicolau Copérnico, Sobre a revolução dos orbes celestes (1543),14 em que este defende matematicamente (através de cálculos dos movimentos dos corpos celestes) um modelo de cosmo em que o Sol é o centro (sistema heliocêntrico), e a Terra apenas mais um astro girando em tomo do Sol, rompendo deste modo com o sistema geocêntrico formulado no SéC.II por Cláudio Ptolomeu em que a Terra se encontra imóvel no lugar central do universo (cuja origem era o Tratado do céu de Aristóteles, embora com importantes diferenças). Representa assim um dos fatores de ruptura mais marcantes no início da modernidade, uma vez que ia contra uma teoria estabelecida há praticamente vinte séculos, constitutiva da própria maneira pela qual o homem antigo e medieval via a si mesmo e ao mundo a que pertencia.

Na verdade, podemos considerar que o interesse pelas ciências naturais se inicia com a reintrodução na Europa ocidental, a partir do final do SéC.XII, da obra de Aristóteles e de seus intérpretes árabes. Embora a revolução científica moderna inspire-se muito em Platão, pela valorização da matemática na explicação do cosmo, e nos pitagórico, que já teriam antecipado o modelo heliocêntrico proposto por Copérnico (segundo ele próprio admite), 15 Aristóteles é o responsável pela ênfase na pesquisa experimental e na importância da investigação da natureza. Portanto, quando os modernos rejeitam o aristotelismo, esta rejeição se explica pelo modelo geocêntrico de cosmo adotado pelos aristotélicos e pelo uso, talvez mesmo o abuso, esco1ástico da lógica aristotélica na demonstração de verdades universais e neces­sárias, em detrimento da observação e da experiência. Por esse motivo, a contribuição de Aristóteles acaba não sendo devidamente reconhecida.

Já no SéC.XIII alguns filósofos se distanciaram da física e da astronomia de Aristóteles, principalmente quanto à sua explicação de movimento, procurando alter­nativas e recorrendo à matemática. Podemos mencionar nessa linha Roberto Grosse­teste (c.l175-1253), Roger Bacon (1214-92) e Nicolau de Oresme (c. 1323-82), bem como a chamada escola franciscana do Merton College de Oxford (SéC.XIV). Roberto Grosseteste destaca-se como um pensador original, valorizando a observação da natureza e a importância da geometria. Alguns de seus tratados como o De luce (Sobre a luz), De sphaera (Sobre a esfera) e o Hexaemeron (Sobre os seis dias da Criação) são bastante inovadores do ponto de vista da discussão cosmológica.

Entretanto, a cosmo10gia não poderia ser considerada independentemente de seus pressupostos metafísicos e teológicos, o que muitas vezes gerava conflitos. Ptolomeu, no Almagesto (séc.rr) e os astrônomos de A1exandria já haviam criticado a concepção aristotélica de cosmo, rompendo com a visão de um céu constituído por esferas homo­cêntricas (tendo um centro comum). Mostraram que esse modelo não "salvava os fe­nômenos", ou seja, não representava adequadamente aquilo que as observações as­tronômicas e os cálculos matemáticos nos revelavam sobre os céus. Porém, o modelo aristotélico era estritamente teórico, fundamentado em sua concepção de matéria e em sua visão de um cosmo hierárquico. As esferas homocêntricas eram uma exigências da própria idéia de um cosmo harmonioso e perfeito. O modelo ptolomaico16 e alexandrino dos epiciclos (esferas excêntricas, com diferentes centros), alternativo ao de Aristóteles, salvava os fenômenos, mas ia contra esse ideal de perfeição.

São Tomás de Aquino (Suma teológica I, questão 32, art.l), por exemplo, defende Aristóteles contra os astrônomos de Alexandria, sustentando que, enquanto esses astrônomos baseavam suas hipóteses em observações e cálculos, a teoria aristotélica era deduzi da de primeiros princípios sendo, portanto, mais verdadeira. Rejeita assim a verificação de uma hipótese como um argumento conclusivo para sua aceitação, argumentando que a verificação, por definição limitada e imperfeita, não pode suplantar os princípios metafísicos estabelecidos racionalmente, nem tampouco as verdades universais e necessárias deduzidas 10gicamente. Segundo essa visão, é mais importante salvar a física aristotélica, e portanto seu sistema como um todo, sua unidade e coerência interna  do que salvar os fenômenos.

Uma das principais transformações do ponto de vista da metodologia científica está precisamente na inversão dessa ordem de prioridades. A ciência moderna surge quando se toma mais importante salvar os fenômenos e quando a observação, a experimentação e a verificação de hipóteses tomam-se critérios decisivos, suplantan­do o argumento metafísico. Trata-se, no entanto, como quase sempre na história das idéias, de um longo processo de transição, muito mais do que de uma ruptura radical. Ao longo desse processo, desde os franciscanos do Merton College (SéC.XIV) até Galileu (1564-1642) e Newton (1643-1727) temos diferentes pensadores, filósofos, teólogos, matemáticos, astrônomos, que contribuíram com diferentes idéias, levando finalmente às profundas transformações na visão científica do SéC.XVIl, tanto em relação ao modelo de cosmo quanto aos aspectos metodológicos da ciência moderna. Examinaremos em seguida, brevemente, algumas das principais contribuições que levam a isso.

O tratado de Copérnico Sobre a revolução dos orbes celestes foi motivado por uma consulta feita pelo Papa Leão x e pelo Concílio de Latrão, visando a reforma do calendário juliano, estabelecido pelos romanos, que ainda vigorava na época. Sentin­do a necessidade de refazer os cálculos de Ptolomeu sobre o movimento do Sol e da Lua, Copérnico desenvolve suas pesquisas e propõe a hipótese heliocêntrica, recor­rendo, como ele mesmo indica, às teorias dos antigos pitagóricos. Na verdade, o modelo heliocêntrico copernicano rompe com o sistema aristotélico-ptolomaico em um aspecto fundamental que é a adoção do Sol, e não da Terra, como centro, porém conserva ainda a concepção de um cosmo fechado, tendo como limite a esfera das estrelas fixas, típico da visão antiga. Será apenas progressivamente que a idéia de um universo infinito será incorporada à  ciência moderna.

Podemos considerar que são fundamentalmente duas as grandes transformações que levarão à revolução científica: 1) Do ponto de vista da cosmologia, a demons­tração da validade do modelo heliocêntrico, empreendida por Galileu; a formulação da noção de um universo infinito, que se inicia com Nicolau de Cusa e Giordano Bruno; e a concepção do movimento dos corpos celestes, principalmente da Terra, em decorrência do modelo heliocêntrico; 2) do ponto de vista da idéia de ciência, a valorização da observação e do método experimental, isto é uma ciência ativa, que se opõe à ciência contemplativa dos antigos; e a utilização da matemática como linguagem da fisica, proposta por Galileu sob inspiração platônica e pitagórica e contrária à concepção aristotélica. A ciência ativa moderna rompe com a separação antiga entre a ciência (episteme), o saber teórico, e a técnica (téchne),17 o saber aplicado, integrando ciência e técnica e fazendo com que problemas práticos no campo da técnica levem a desenvolvimentos científicos, bem como com que hipó­teses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua aplicação na técnica.

A revolução científica moderna resulta portanto da conjugação desses fatores, para o que contribuíram diferentes pensadores ao longos dos séculos XV a XVII, sendo que, em certos aspectos, rompe de fato decisivamente com a ciência antiga, mas em outros inspira-se ainda em teorias clássicas. Só com Newton, praticamente já no SéC.XVIlI, é que teremos a formulação de uma ciência fisico-matemática plenamente elaborada em um sistema teórico.

O modelo heliocêntrico de cosmo foi inicialmente proposto por Copérnico, baseado, segundo suas próprias palavras, nos antigos pitagóricos. De início, foi proposto apenas como hipótese, o que o tomava mais facilmente aceitável. Mas não foi aceito de imediato, apesar da maior precisão dos cálculos de Copérnico, talvez porque abalasse as crenças mais profundas do homem antigo e medieval como a idéia da Terra fixa no centro do universo. É curioso, por exemplo, que o grande astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601) chegue a propor um sistema intermediário, O sistema ticônico, em que a Terra permanece no centro do cosmo, o Sol gira em tomo da Terra e os planetas, por sua vez, giram em tomo do Sol. Embora essa imagem soe absurda hoje, ela mostra como de fato as mudanças foram progressivas. É apenas com Galileu, já no século XVII, que se dá o que podemos considerar a demo empírica do modelo copernicano, graças ao uso do telescópio. Inicialmente usado para fins(MARCONDES, Danilo, Iniciação à Filosofia)

 militares, o telescópio, inventado nos Países Baixos e aperfeiçoado por Galileu, é dirigido por ele aos céus. Galileu é capaz de observar então as luas do planeta Júpiter, que apresentavam, segundo ele, uma espécie de modelo em miniatura do sistema solar. Quando Galileu é interpelado pela Igreja em Roma e sugere que os cardeais olhem através de seu telescópio, ouve como resposta, na linha dos argumen­tos de são Tomás, que nenhuma verificação empírica pode suplantar as antigas doutrinas, porque a observação é limitada e imperfeita.

Como dissemos acima, Copérnico ainda adota a idéia de um cosmo fechado e li­mitado pela última das esferas, a esfera das estrelas fixas. A idéia de um cosmo infi­nito, de um universo aberto, 18 tem na verdade uma origem mais metafísica do que es­tritamente física ou astronômica. Seu ponto de partida se encontra em Nicolau de Cusa, um cardeal alemão do Renascimento, que em sua obra de inspiração neoplatônica De docta ignorantia ("Sobre a sábia ignorância"), de 1440, introduz a idéia de um uni­verso sem limite, indeterminado, em suas palavras, immensum, bem como sem centro e sem circunferência. Giordano Bruno, um admirador de Copérnico, leva adiante essa idéia, propondo em seu De l'lnfinito universo e mondi ("Sobre o universo infinito e os mundos"), de 1583, a concepção de um universo infinito, influenciado pelo neoplatonismo. Em 1600 Giordano Bruno é queimado na fogueira como herege. Em 1616 a Inquisição condena a obra de Copérnico. Um dos argumentos utilizados é que, nas Escrituras, Josué pede a Jeová que faça o Sol parar no céu até a derrota de seus inimigos (Josué, 10, 11-13), ora se o Sol parou, é porque se movia em tomo da Terra.

Em 1609 o astrônomo alemão Johannes Kepler, um discípulo de Tycho Brahe, defende em sua Astronomia nova sive physica coelestis ("Nova astronomia ou fisica celeste") a idéia de que o universo é regido por leis matemáticas, embora Kepler se inspirasse em uma concepção platônico-pitagórica. É na verdade Galileu em seu Il saggiatore ("O ensaiador") quem diz: "A natureza é um livro escrito em linguagem geométrica; para compreendê-Ia é necessário apenas aprender a ler esta linguagem". Este parece ser o ponto de partida do mecanicismo como modelo físico de universo. O mecanicismo vê a natureza como um mecanismo, constituído de elementos que, como as engrenagens de um relógio, a fazem funcionar impulsionados por uma força externa. A função da ciência é descrever a

natureza desses elementos e as leis e princípios que explicam seu funcionamento.

Há contudo uma diferença entre a concepção que começa a ser desenvolvida por Galileu e a que encontramos ainda em Kepler, para quem o recurso à matemática parte de uma inspiração platônica e pitagórica, a matemática representando a perfei­ção formal. Para Galileu, dizer que a matemática é a linguagem da natureza significa dizer que a nova fisica deve tratar o espaço como abstrato e o movimento como uma relação entre dois pontos no espaço, o que pode ser expresso através de uma equação. Por outro lado, Kepler já havia descrito as órbitas dos planetas como elípticas, enquanto que Galileu ainda postulava a idéia de órbitas circulares. Isso mostra como a posição dos diferentes cientistas da época era ambivalente e como um mesmo cientista poderia adotar posições avançadas acerca de certas questões e tradicionalis­tas acerca de outras.

Podemos considerar Galileu de certa forma o ponto de chegada de um processo de transformação da antiga visão de mundo e de ciência inaugurada dois séculos antes no início do Renascimento. Galileu sintetiza, sistematiza, elabora e desenvolve a contribuição desses diferentes pensadores em uma obra genial - que terá grande influência em seu tempo e no desenvolvimento da física a partir daí -, mas está longe de ser o criador original e solitário da nova ciência. Mesmo a idéia de uma ciência experimental já era corrente na época do Renascimento, inclusive em outros campos do saber, além da física e da astronomia.

Talvez um dos melhores exemplos desse interesse pela técnica e pela ciência experimental se encontre em Leonardo da Vinci (1452-1519). O grande pintor italiano foi também um inventor de objetos mecânicos, desenhando modelos de máquinas e objetos voadores, além de demonstrar um interesse profundo por anato­mia e biologia, ilustrando, por exemplo, o processo da gestação desde a inseminação até o desenvolvimento do feto no útero. Este interesse pela biologia e pelas artes médicas tem seu ponto alto no maior anatomista da época, André Vesalius, cuja obra De humanis corporis fabrica ("A estrutura do corpo humano"), detalhadamente ilustrada, foi publicada no mesmo ano do tratado de Copérnico (1543). Outras obras importantes dessa época no campo da técnica são a Pirotechnia de Biringuccio (1480-1539), um tratado de metalurgia, e De re metallica de Georg Bauer (1490­1555).

O humanismo renascentista havia colocado o homem no centro de suas preocu­pações éticas, estéticas, políticas. A Reforma protestante valorizara o individualismo e o espírito crítico, bem como a discussão de questões éticas e religiosas. A revolução científica pode ser considerada uma grande realização do espírito crítico humano, com sua formulação de hipóteses ousadas e inovadoras e com sua busca de alterna­tivas para a explicação científica; porém, ao tirar a Terra do centro do universo e ao trazer para o primeiro plano a ciência da natureza, se afasta dos temas centrais do humanismo e da Reforma, sofrendo em muitos casos a condenação tanto de protes­tantes quanto de católicos. O homem deixa de ser o microcosmo que reflete em si a grandeza e a harmonia do macrocosmo, as novas teorias dissociando radicalmente a natureza do universo da natureza humana.

É significativo, portanto, que Descartes, talvez o filósofo mais importante e mais representativo desse período, dedique toda a sua obra quase que exclusivamente à questão da possibilidade do conhecimento e da fundamentação da ciência, defenden­do as novas teorias científicas e o modelo de ciência que pressupõem.

Lemos nos estatutos da Royal Society inglesa, redigidos em 1663 pelo cientista Robert Hooke, inventor da bomba a vácuo: "O objetivo da Royal Society é melhorar o conhecimento das coisas naturais e de todas as artes úteis, manufaturas, práticas mecânicas, engenhos e invenções, por meio de experiências (sem se imiscuir em teologia, metafísica, moral, política, gramática, retórica ou lógica)." Isso revela mais uma vez como o pensamento moderno em sua gênese não constitui um todo orgânico, um pensamento uniforme ou homogêneo, sendo o resultado de diferentes contribuições, muitas vezes contraditórias, de pensadores em diversos campos do saber. Forma-se assim um mosaico que, visto a distância pelo olhar retrospectivo da história da filosofia, apresenta uma imagem que possui maior unidade do que se examinado de perto, quando o encaixe das peças não é tão nítido.

Devemos também ser cautelosos ao considerar a ciência moderna como o triunfo da racionalidade contra o obscurantismo medieval. Em muitos aspectos a escolástica medieval, com sua inspiração aristotélica e seu recurso à lógica, foi mais racionalista do que a ciência moderna. As novas teorias científicas acerca do cosmo, da natureza da matéria, do infinito e da importância da matemática tiveram freqüentemente uma inspiração pitagórica e neoplatônica, em alguns casos até mesmo mística. Kepler tinha um grande interesse pela astrologia e fazia horóscopos; Descartes era Rosacruz; o próprio Newton interessava-se por astrologia e alquimia. O grande alquimista e as­trólogo Paracelso (1493-1541) foi contemporâneo dos humanistas. O melhor exem­plo disso foi o enorme sucesso nesse período do Corpus hermeticum, uma série de escritos gregos considerados um pouco posteriores aos escritos de Moisés, de caráter místico, atribuídos a Hermes Trimegistos ("Hermes Três Vezes Grande"), uma en­carnação do deus egípcio Thot. Trata-se de textos de caráter místico, que contêm uma sabedoria oculta e combinam questões cosmológicas e teológicas em uma linguagem poética e pracular. Esses textos foram traduzidos por Marsílio Ficino, o grande humanista tradutor de Platão, e serviram em parte de inspiração às novas cosmologias e à ruptura com o espírito da escolástica. Apenas em 1617 o erudito Isaac Causabon revelou serem esses textos apócrifos, pertencendo a um período bastante posterior, já dos primeiros séculos do cristianismo, combinando elementos cristãos, gnósticos e fontes anteriores. De fato, o rompimento com esse pensamento místico, iniciático e ocultista só ocorrerá com o Iluminismo do SéC.XVIII, de caráter racionalista e secular, valorizando a experimentação e o materialismo e criticando a superstição.